A imprensa e seu papel na construção da percepção distópica de realidade
Artigo de Eduarda Schein e Maiara Marinho
O semiólogo Roland Barthes dizia que o mito é uma significação terceira, resultado da inter-relação entre a significação primeira e original com uma significação segunda que é feita a partir de um esvaziamento de história para a distorção de determinados conceitos. Com isso, “o mito é constituído pela eliminação histórica das coisas”. Em 2017, os jornais brasileiros hegemônicos dedicaram-se, em seus editoriais, a fazer forte campanha a favor das reformas Trabalhista e Previdenciária. Nesses editoriais, havia sempre a associação da brutalidade e da irracionalidade ao PT e às bandeiras da esquerda e de algumas instituições, sobretudo o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) e o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), o que construiu no inconsciente coletivo a imagem de que esses movimentos são violentos.
Foi comum a utilização de termos como “mafiosos” e “gangsterismo sindical” (O Estadão, 29/04/2017), para citar alguns exemplos. Em outro editorial do mesmo jornal (27/03/2017), o movimento sindical era chamado de “indústria de aventureiros de olho na divisão bilionária das contribuições sindical e assistencial”. E aos que participavam de manifestações de rua era designado o termo “tigrada” (29/04/2017). Esses são apenas alguns exemplos que demonstram a participação da grande imprensa na formação de mitos conforme o conceito de Barthes, que acabaram alimentando o terreno para a construção dele, o inominável. Mas não só!
A grande imprensa brasileira sustenta-se sob os pilares do neoliberalismo. Sempre foi liberal, antes de ser republicana. Não é de hoje sua defesa das privatizações, do livre mercado e das exigências do capitalismo nos seus ciclos de ‘modernização’. E como construtora de opinião pública, apela às significações necessárias para depreciar os movimentos sociais se utilizando de figuras públicas.”
O enredo ideológico em que nos encontramos hoje é fruto também dessa falta de precisão no uso dos conceitos. E, ainda que mesmo o PT se considere um partido social-democrata, há um número expressivo de desavisados que consideram verdade a máxima de que vivemos sob uma ameaça comunista. E fica mais complexo: de que a Rede Globo e o William Bonner são comunistas. Vejam só a que ponto chegamos em nossa própria distopia! Além de soar um pouco ofensivo.
O último exemplo dessa prática perversa que ameaça nossa democracia e dá saltos ao negacionismo foi o editorial de O Estadão “Nascidos um para o outro”. Uma descarada e deliberada comparação entre Bolsonaro e Lula como mais um exemplo do mito criado a partir da falsa simetria. E dizer que isso é um equívoco, caso alguém ainda tenha dúvidas, não é o mesmo que dizer que o PT não cometeu erros ou deixou a desejar, sobretudo para a população negra, indígena e periférica. Mas, definitivamente, existem grandes, importantes e pontuais diferenças entre um e outro e por isso eles não podem ser postos no mesmo lugar.
Ainda que a intenção deste texto não seja a de fazer demarcações, algumas são importantes. Bolsonaro é um genocida confesso, incapaz de estabelecer diálogo inclusive com quem, em um primeiro momento, se apresenta como aliado. Age como um garoto mimado caso suas vontades não sejam respeitadas como ele espera. Lula é um defensor de políticas públicas, conciliador e sempre respeitou a autonomia das instituições. Contudo, para o jornal, ambos “enxergam o mundo e seu papel nele da mesmíssima perspectiva”.
O que é injusto se recordarmos que a imprensa se manteve muito bem protegida nos governos petistas, não podendo ser dito o mesmo com o governo de Bolsonaro. E é esse tipo de falsa simetria que alimenta sensos comuns do tipo que esvaziam o debate político, ao construírem no imaginário popular a imagem de que políticos são todos iguais e que, mesmo com objetivos diferentes, sempre causam mal à população de alguma forma.
Dito isso, nos cabe dar atenção aos movimentos que se iniciam no Estadão, com o editorial mencionado, e com reportagem da Folha de São Paulo do último dia 24 sobre o nome à candidatura para a prefeitura de São Paulo, Jilmar Tatto (PT). O texto publicado pela Folha traz uma análise sobre Tatto e sua família e a relação destes com organizações da sociedade civil na zona sul da capital. Só não utilizaram a palavra ‘milícia’ porque ainda é muito cedo para atacar desta maneira.
Em nossa análise, não tardará para que todas as distorções e ressignificações que atravessam o PT e se esparramam sobre todos os movimentos sociais e suas bandeiras, comecem a tomar conta das páginas da grande imprensa sempre em tons pejorativos. A estratégia da vez vai ser justamente colocar na mesma balança, com tentativa de equivalência, tudo o que representa o governo de Bolsonaro e os representantes da esquerda.”
A imprensa brasileira se deu conta que a atual crise política tem apresentado provas suficientes da importância de políticas públicas, da participação do Estado público e democrático, da ampliação e fortalecimento da educação, da pesquisa e da ciência, de direito trabalhista, de assistência social, e tantas outras pautas que não cabem nesse modelo do capital cada vez mais austero e agressivo.
E é justamente na esteira desta estratégia comunicacional que os grandes veículos ajudam a moldar o cenário para as próximas eleições, tanto as municipais deste ano, quanto a presidencial de 2022 (sim, já!).
Ao pôr Lula e Bolsonaro no mesmo lugar, ao seguir criminalizando movimentos sociais ligados à esquerda e ao usar desta imagem pública pejorativa construída em cima dos mesmos para atacar Jilmar Tatto, a grande imprensa se posiciona para ajudar a construir candidaturas condizentes com os interesses econômicos de seus proprietários e que não sejam extremas nem à direita e nem à esquerda. Porém, para isso é preciso catalogar quem são os extremos, e é aí que entra a falsa simetria.
Assim como o Estadão, a Globo, protagonista na construção do ranço antipetista e que tratou como parte do jogo democrático as declarações já então antidemocráticas de Bolsonaro, agora se coloca como oposição ao governo federal, tentando desconstruir o mito que ajudou a tornar viável. Construindo outros.”
A criação do “herói” Moro
A nível nacional, um dos mais favorecidos pela cobertura da maior emissora do país é o ex-juiz e agora ex-ministro Sergio Moro, que, até romper com Bolsonaro, era a referência moral e figura mais popular do governo, visto como o herói que confrontou grandes corporações e mandou políticos para a cadeia. Um mito. No sentido real e no que virou, em uma operação que também ganhou significação superestimada pela imprensa, que praticamente transformou a Lava Jato em um partido político.
Deslocar-se agora de Bolsonaro é uma tentativa da mídia de colocar-se em uma posição de moderação e sensatez, mas seguir batendo na esquerda – representada na grande mídia principalmente pelo PT – é necessário para manter a imagem construída há anos e ainda muito forte diante do avanço da extrema direita. Além disso, impedir que chegue ao poder um projeto de governo oposto aos interesses dos grupos econômicos que comandam os maiores veículos do país.
E é aí que entra a cobertura da saída de Moro do governo. A julgar pelo Jornal Nacional, o ex-ministro foi uma vítima e não um cúmplice de Bolsonaro. Omitir a conivência de Moro com as arbitrariedades de Bolsonaro por mais de um ano de governo é necessário para preservar a imagem técnica, íntegra e moderada que o magistrado representa e que tão convenientemente serve. Afinal, Moro representa a mesma agenda econômica de Bolsonaro, porém sem arroubos. Tem a fala mansa e se põe como alguém que tem na anticorrupção a principal bandeira. O nome perfeito entre o antipetismo e o bolsonarismo. “Nem Bolsonaro, nem PT”, lembram?
Moro representa a figura a ser tomada como diretriz e esse descolamento de parte da direita deve começar já no pleito deste ano, com candidatos apresentados como o meio termo necessário para não parecerem obviamente indefensáveis mas também não representarem aquilo que foi tão estrategicamente desconstruído ao longo das significações midiáticas. A cobertura mais amena sobre os atos antifascistas segue a mesma lógica.
Os movimentos antifascistas possuem uma característica que a mídia tem tentado reciclar, em um primeiro momento. Eles não são uma organização, mas uma pauta que pode ser abraçada sem que as pessoas necessariamente sejam organizadas em partidos políticos ou movimentos sociais, o que permite seguir opondo-se a Bolsonaro e se manter numa aparente posição de ‘neutralidade’. O mesmo foi feito com as jornadas de junho de 2013, organizando os ‘baderneiros’ e ‘vândalos’ nos grupos compostos por bandeiras partidárias e organizações de esquerda.
Há uma diferença significativa entre os atos de 2020 e 2013 que se insere justamente na centralidade da pauta, o antifascismo, que carrega consigo o fim da necropolítica e de uma sociedade autoritária e desigual. Contudo, bastará que as ruas possam ser ocupadas sem o risco que a pandemia traz e, com isso, as organizações de esquerda encontrarem por fim um motivo para unificar e fortalecer a luta nas ruas, que o tom deverá mudar. Enquanto isso, reproduzem os conceitos sem muita explicação, na tentativa de que não sejam compreendidos à raiz do que significam.
Se a democracia está em crise, muito disso é resultado das significações terceiras que a imprensa cria a partir de significações já existentes com novos elementos, resultando em uma percepção distópica da realidade. E esse papel ela seguirá cumprindo. Cabe a nós retornar os conceitos ao seu significado, em toda sua complexidade e contradição, se debruçar sem tentativa de logo esgotá-lo, apreendendo no conceito as particularidades que as transformações causam e que devem retornar a ele, dialeticamente, como são a história e a vida humana.
Eduarda Schein é jornalista e Maiara Marinho é jornalista e Mestra em comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente faz parte da coordenação do Instituto de Estudos Políticos Mário Alves, de Pelotas (RS).